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Surpresa!
E ainda tem quem duvide que vai ter golpe? O poder judiciário foi o veículo dos golpes na América Latina destas últimas décadas, pois é terreno fértil para a direita, sendo completamente protegido de toda e qualquer participação popular.
Aliás, só há pouco percebi uma diferença óbvia entre os golpes na época da Guerra Fria e os atuais. Golpes são reacionários no sentido literal da palavra, pois sempre ocorrem por conta dos donos do poder sentindo este esvanecer, mesmo que não esteja; a defesa do privilégio é o motor da ação direitista. Por isso quase todos os golpes na Guerra Fria vinham da direita, geralmente contra um governo minimamente favorável ao povo, às vezes para "tomar as rédeas" de um governo liberal tido como incapaz de conter o povo. O traço comum a todos eles é que não bastava tirar os indesejáveis do poder, mas colocar um guardião da burguesia como ditador, para evitar que os indesejáveis batessem de volta.
Findada a Guerra Fria, e não havendo alternativas ao capitalismo, os golpes agora são bem menos trabalhosos, quase sem violência, e, por isso mesmo, mais corriqueiros. Não há a necessidade de proteger o Estado de uma ameaça da esquerda, logo um golpe é apenas uma "correção". O eterno ciclo de eleições inúteis é talvez a fonte mais importante de legitimidade da democracia liberal, e sua suspensão pelos golpes antigos em favor de um ditador era, obviamente, uma tirania aberta, um fator que podia desetabilizar a situação ao invés de corrigi-la. Não mais havendo forças de esquerda para retrucar, a burguesia pode se dar ao luxo desse golpe light. Na eventualidade do ciclo eleitoral deixar passar alguém que queira alterar o status quo, basta derrubá-lo e deixar o ciclo eleitoral seguir em frente, e tentar apagar este "triste episódio na história nacional". Não há necessidade de ditador, bastando apenas a polícia para debelar protestos, que não duram muito. A nova necessidade que substitui a implantação de uma ditadura é legitimar, ou melhor, "legitimar" o golpe através de invencionices legais. Logo, oficialmente, não houve golpe, apenas uma, digamos, intervenção extraordinária ou alguma outra baboseira. O presidente interino restabelece o controle elitista sobre o Estado, em breve há uma nova eleição pra presidente, e c'est fini. A burguesia força o retorno da rotina para fingir que o não-golpe foi perfeitamente legal. A comunidade internacional resmunga um pouco mas aceita, e protestos logo cessam, completamente desmoralizados, pois as vestes falsas da legalidade sequer permitem que se chame de golpe palaciano. É um novo tipo de golpe, ainda mais insidioso, e deveria ter um nome próprio. Lembro-me que, quando houve o golpe em Honduras, os pulhas da direita brasileira estavam falando em "golpe constitucional", sem a menor ironia. Um golpe para salvar a democracia! Lembra daquela mítica citação da Guerra do Vietnã? "Foi preciso destruir a vila para salvá-la"? Pois então.
Note-se que a "legitimação" é uma tarefa natural para, ora pois, o judiciário, baluarte da direita moderna. Queria lembrar-me do nome do sujeito que teve este insight lá no começo deste fenômeno, mas infelizmente não consigo. De qualquer modo, ele predisse: o judiciário será a ponta de lança dos novos golpes da direita (perdão pela redundância) na América Latina. Acertou na mosca. A exata mesma coisa aconteceu depois no Paraguai. Foi tão corriqueiro que eles até deixaram o presidente deposto livre e elegível para senador na próxima eleição. Esses golpes tornaram-se banais, um mecanismo simples para derrubar algum presidente que ouse sequer olhar para a esquerda, sem (muito) dano à legitimidade democrática.
Francamente, este novo tipo de golpe não parece ter qualquer contra-medida, na atual conjuntura de uma esquerda mundial comatosa. Na improvável hipótese de os protestos resistirem à normalização do golpe, eles serão tachados de desordeiros e golpistas, e a população em geral acredita. Estes neo-golpes são uma arma contra a qual a esquerda, para não falar da democracia e do povo, está completamente indefesa. É mais um sinal de que a democracia burguesa está falida, o que pode ser claro para nós mas que ainda demorará muito para tornar-se senso comum, e nesse intervalo, surgirão os tais "sintomas mórbidos" cada vez piores, dos quais Bolsonaro é o mais novo (e mórbido). A coisa vai ficar muito feia antes de melhorar, como sempre digo.
A esquerda deve passar prontamente a defender a suplantação da democracia representativa pela participativa e direta como uma de suas propostas mais imediatas. Em termos práticos, extingüir o poder legislativo e substituí-lo pelos tão afamados concelhos, um primeiro passo no caminho de colocar o povo no poder que, espero, talvez seja possível mesmo dentro de um Estado burguês. Quanto antes a democracia liberal for eutanasiada, melhor para a humanidade. O que obviamente exclui a burguesia.
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